Papel de gestores e administradores é claro na norma recém-publicada, mas eficácia prescinde de acordos operacionais entre as partes
Os diferentes atores da indústria de fundos de investimento, com a publicação da Resolução CVM 175/22, vão enfrentar uma série de desafios práticos para atender às propostas de maior transparência na cobrança de taxas, além da divisão de responsabilidades entre eles. A visão geral é que, com a RCVM 175, gestores e administradores – agora chamados de prestadores de serviços essenciais – passam a ter responsabilidades mais bem-definidas.
“É uma mudança importante. Antes, o administrador tinha obrigação de contratar o gestor e apenas ele, administrador, era o representante legal do fundo na constituição. Após a nova resolução, no próprio ato da constituição, administrador e gestor já dividem suas responsabilidades”, explica Guilherme Cooke, CRO da Vórtx e mediador do encontro que reuniu representante da CVM e advogados especialistas no tema.Agora, administradores e gestores não têm mais hierarquia entre eles. O papel do administrador de fiscalizar o gestor de forma ampla não existe mais, revendo a missão de gatekeeper do administrador.
“Essas mudanças são fundamentais. As atribuições ficaram mais claras. Por exemplo em caso de desenquadramento da carteira do fundo, a obrigação de reenquadrar é do gestor e, a posteriori, cabe ao administrador fazer a verificação”, comenta André Wakimoto, sócio do Cepeda Advogados. “Esta parte da norma foi muito positiva. Corrige distorção histórica que se agravou ao longo do tempo.”
A mudança, na visão de Cooke, da Vórtx, é saudável, mas suscita algumas dúvidas de ordem prática. “Em teoria, a norma permite que o administrador veja o enquadramento de uma carteira uma vez por semana (…), mas o botão da liquidação, da TED, continua com ele.”, explica o executivo, que vê complexidades operacionais neste novo modelo.
O diretor da CVM, Alexandre Rangel, cita o artigo 46, parágrafo 1, que trata da obrigação do administrador de informar à CVM qualquer desenquadramento que tenha durado 10 dias consecutivos, pelo menos. “Tem uma confusão nisto porque a lei determina que deve ser avisado o desenquadramento que dure 10 dias, mas não que precise olhar apenas de 10 em 10 dias. É um comando padrão de conduta.”
Guilherme Cooke citou outro ponto que, na visão dele, precisa de esclarecimentos. “Administradores e gestores definem seus parâmetros de responsabilidade para um fundo, mas seria importante saber até que ponto a CVM vai olhar o mérito disto”, questiona o advogado dando como exemplo a possibilidade de que a taxa de remuneração, de 1% ou 2%, seja usada pelo acordo para limitar a responsabilidade de uma das partes. Rangel, da CVM, informou que além das atribuições definidas entre os essenciais, haverá abaixo uma norma e os acordos operacionais que vão possibilitar estabelecer o que a norma não o fez. “Primeiro vejo como positiva a liberdade no aspecto para que os essenciais se acertem. Mas além disso, o regulamento do fundo pode estabelecer as responsabilidades e forma de aferição entre si e perante o público. Temos aqui a lei, a regulamentação, o acordo operacional e o regulamento do fundo. A soma de toda a documentação vai trazer a clareza e objetividade necessárias.”
Outro ponto que ainda suscita dúvida nos agentes do setor é sobre o novo papel das registradoras em FIDCs, conforme explica Rubens Vidigal. “Tem funções claras para gestor, administrador e a figura nova da registradora. O gestor passou a ter responsabilidade perante os ativos, responsabilidade por fazer a análise essencial e a seleção. Mas sobre o registro a dúvida é sobre o que tem que ser registrado e o que não tem, e como avaliar o termo “passível de registro”. Isto influencia na atuação de gestor e custodiante.”
O representante da CVM esclareceu que o desenvolvimento da figura do registrador, com habilitação junto ao Banco Central, ainda tem longa estrada a percorrer “(…) ficou claro que nem todos os direitos creditórios são passíveis de registro, é um processo que está em curso”, comenta Rangel explicando que pela 175 é considerado para fins de registro os mesmos ativos que estão assim descritos pelo BC. “Nas demais classes, e são várias, a figura do custodiante permanece.” E acrescenta: “seria talvez excessivamente arrojado, inseguro, esvaziar a figura do custodiante, para uma entidade (registradora) que não está sob nossa supervisão.” Segundo o diretor, a solução razoável foi deixar a norma pronta para o cenário em que o BC autorize novos players e novos tipos de registro.
A RCVM 175 também prevê divisão de taxas de forma independente no regulamento: os custos do fundo serão divididos em três principais, administração, gestão e distribuição, fazendo com que a informação fique mais clara ao investidor, decisão elogiada pelos executivos que participaram do encontro na Vórtx. “Parece importante que o investidor tenha noção e ciência do que está dentro da taxa de administração e o que vai para quem na cadeia de prestadores de serviço. Combinações comerciais são legitimas desde que com transparência. CVM não proibiu o rebate, desde que seja informado”, explicou Rangel, da CVM.
André Wakimoto, do Cepeda Advogados, ponderou que há casos específicos que ainda precisam de mais esclarecimentos pela CVM. “Muitos fundos alocadores, Family offices, recebem o rebate em sua carteira. Se a interpretação mais ampla sobre o parágrafo que exige a reversão prevalecer, talvez haja a necessidade de rearranjo das estruturas de alocação. Neste ponto deveria ter uma explicação da área técnica da CVM para quem faz a reversão, e quais seus limites”, questiona. Rangel, da CVM, afirmou ao ser questionado sobre o rebate que a CVM “vai aprofundar a discussão”.
O Anexo Normativo I referente aos FIFs (Ações, Cambiais, Multimercado e Renda Fixa) também apresenta novidades relevantes como: a possibilidade de investimento em ativos ambientais (inclusive crédito de carbono) e em criptoativos; a ampliação de limites de concentração por tipo de ativo financeiro; e o estabelecimento de limites de exposição ao risco de capital.
Já com o Anexo II, vem o tema de produtos mais sofisticados, como os FIDCs, para investidores em geral: os fundos de investimentos em direitos creditórios (FIDCs), que também só eram acessíveis a investidores qualificados, agora poderão ser acessados por qualquer um, desde que apenas nas cotas sênior (aquelas com maior qualidade de crédito, superior às cotas mezanino e subordinada), o que abre uma nova oportunidade de diversificação aos investidores.
“Tem muitas possibilidades a serem exploradas. No entanto, uma mudança em FIDC, do ponto de vista de conflito de interesse, preocupa. É correto o entendimento de que prestador de serviço e partes relacionadas não possam votar em assembleias de fundos, na regra geral. Mas FIDCs têm cota subordinada e, na maioria, o cotista subordinado é o agente de cobrança, logo ele é prestador de serviço e sócio. Me parece que a situação do FIDC é diferenciada em relação a outros fundos. Ponto sensível para se pensar”, explica Rubens Vidigal.
Em resposta, o diretor da CVM afirmou que “não tem a preocupação na regra geral porque no artigo 75 há cinco incisos que listam participantes que não podem votar”. Ele cita que o parágrafo 1 diz que não se aplica a vedação do direito de voto quando os únicos cotistas forem eles mesmos ou quando houver aquiescência da maioria dos cotistas, classe ou subclasse, manifestada na própria assembleia e constar de permissão previamente concedida pelo cotista e arquivada pelo administrador. “Havendo permissão expressa, é possível que prestador de serviço A ou B vote. Esse voto pode ser previamente permitido pelo cotista, talvez no termo de adesão. O desafio é que o cotista tome conhecimento e fique de acordo com aquela situação que permite o voto. E também que o novo cotista que comprou no secundário tenha ciência e concorde. Sei que é um desafio.”
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